Digital Afterlife: pode a tecnologia fazer-nos “viver” para sempre?
Os avanços da inteligência artificial estão a permitir possibilidades nunca antes imaginadas e alguns teóricos acreditam mesmo que um dia será possível vencer a morte de forma virtual. E já existe uma rede social, criada em Portugal, onde cada utilizador tem uma “contraparte” digital que fica ativa após a sua morte. Mas será possivel – ou desejável – uma existência sem fim?
(Este artigo foi publicado no caderno Et Cetera, do Jornal Económico, na edição de 4 de fevereiro de 2018)
Uma jovem mulher que perde o marido e que, dominada pela saudade, compra um robô que fala e pensa como ele, inspirado nas palavras que o falecido deixou escrito nas redes sociais. Um digital afterlife chamado San Junipero, onde a consciência sobrevive para além da morte, pelo menos enquanto existir ligação à eletricidade, num gigantesco data center gerido por máquinas inteligentes. Uma mulher que fica em coma após um acidente e tem a sua consciência “transplantada” para um urso de peluche robô, de modo a poder estar junto do filho. Até que ponto estes desconcertantes enredos da aclamada série britânica Black Mirror (Netflix) podem tornar-se realidade?
A obsessão dos seres humanos pela morte e pelo que existirá – ou não – do outro lado é tão antiga como a própria Humanidade. E é uma das características do que significa ser humano. Não somos o único animal que sofre emocionalmente e faz luto na sequência da morte de entes queridos, mas nenhum outro sepulta os seus mortos. Somos também, até prova em contrário, os únicos seres vivos que têm consciência da sua própria finitude. Este facto estará indissociavelmente ligado à origem das mitologias e das religiões. Não por acaso, as formas iniciais de religiosidade – do latim religare, palavra de raiz obscura que alguns interpretam como a união entre o plano físico e o divino – surgiram no Paleolítico e estavam associadas aos primeiros ritos funerários. A partir de certa altura, o Homem pré-histórico despertou para o transcendente e passou a sepultar os seus mortos acompanhados de bens pessoais e objetos valiosos, num claro sinal de crença numa existência supra-terrena.

Milhares de anos se passaram desde estas primeiras tentativas de superar a morte, mas continuamos desejosos de existir eternamente, seja na carne ou no espírito. E tal como a mitologia e as religiões, também a ciência e a tecnologia procuram dar resposta a esta angústia ancestral. Depois dos grandes avanços na medicina, que nos últimos cem anos conseguiu duplicar a esperança média de vida dos seres humanos, a inteligência artificial tornou-se o mais recente campo de batalha na luta contra a morte. Se não necessariamente do corpo físico e da consciência que este alberga, pelo menos de alguns aspetos da identidade de cada ser humano. Mas o caminho a percorrer ainda será longo.
“Se por identidade entendermos uma identidade consciente de si, então arrancá-la de um corpo e encaixotá-la como se vê num dos episódios do Black Mirror, como ressurreições digitais, está ainda muito longe de estar dentro das possibilidades. Não é só não se saber ainda como, não se faz ideia ainda de como. Extrair uma consciência de um cérebro parece difícil, se não impossível, porque, em última análise, a consciência humana não é informação, mas um fenómeno biológico”, disse o filósofo André Barata ao Jornal Económico. Assim, mesmo que fosse possível copiar para um computador toda a informação que guardamos no cérebro, não conseguiríamos viver para sempre. Seria como copiar um ficheiro de um computador para uma pen drive: o ficheiro copiado é sempre distinto do original e os dois podem coexistir. Serão sempre entidades distintas.

Para quem morre, o benefício de ter a consciência copiada para um qualquer servidor na cloud seria nulo. A existir benefício, seria para os familiares e amigos, que desta forma poderiam continuar a privar com uma cópia da mente da pessoa falecida. Ora embora ainda não seja possível copiar a consciência humana para um suporte digital, as novas tecnologias de inteligência artificial já possibilitam a criação de bots que analisam as mensagens, os emails e os posts em redes sociais, criando versões virtuais das pessoas que os escrevem. Desta forma, os amigos e familiares podem conviver com um bot que conversa, discute e conta anedotas exactamente da mesma forma que a pessoa que lhe deu origem, mesmo que esta já tenha falecido. Essa pessoa não existe para sempre, mas alguns aspetos da sua personalidade são preservados ad eternum no plano digital, para benefício (ou não) dos vivos.
“A identidade sim, pode ser capturada e reproduzida digitalmente, pelo menos muito mais do que talvez imaginássemos. Aliás, é nisto que os últimos episódios do Black Mirror são especialmente bons”, realçou André Barata. O filósofo destaca os potenciais benefícios de, por esta via, se preservarem aspetos cruciais das personalidades dos grandes nomes da ciência e das artes, para não falar dos nossos familiares e amigos que já deixaram este mundo. Mas as incógnitas são muitas. Se a utilização desta tecnologia se massificar, terá lugar uma revolução social com consequências profundas nas relações pessoais e familiares, nos costumes, na investigação académica e até na psicologia humana, pois o processo de luto passará a ser diferente. A pessoa falecida continuará sempre presente no dia a dia e as gerações vindouras poderão falar com os seus antepassados há muito desaparecidos. Confuso? Imagine como seria se pudesse conviver com os seus tetravós ou com figuras como Einstein, Napoleão ou Jesus Cristo.
O português Henrique Jorge foi um dos primeiros a ver o potencial praticamente ilimitado desta tecnologia. O empreendedor, que se descreve a si mesmo como um “apaixonado pelas tecnologias há 30 anos”, criou uma rede social chamada Eter9, que pretende revolucionar a forma como interagimos online. À primeira vista, é uma rede social normal: a inscrição é gratuita e dura para sempre, conversa-se e fazem-se amigos. Mas as semelhanças com o Facebook e outras redes sociais ficam-se por aqui, pois na Eter9 o “para sempre” é mesmo para sempre. Isto porque, como explicou Henrique Jorge ao Jornal Económico, a Eter9 cria “contrapartes digitais” dos seus utilizadores, que copiam e preservam a sua identidade, permanecendo ativas para além da morte das pessoas que lhes deram origem.
“Sendo um projecto novo, já conta com mais de 50 mil utilizadores de todos os pontos do mundo. Quando os utilizadores se registam – free forever -, é imediatamente criada a sua contraparte no ciberespaço que vai absorvendo tudo o que o utilizador faz, para mais tarde se comportar como se do utilizador físico se tratasse”, disse o fundador da Eter9, acrescentando que “todos os outros utilizadores sabem que é uma «contraparte» e não um humano quando existe interacção na rede”. Os outros utilizadores da rede social também saberão quando a pessoa física desaparece e apenas permanece a sua contraparte digital, adiantou.
A Eter9 tem um modelo de negócio que só será colocado em prática “daqui a alguns anos”, disse Henrique Jorge. “Assenta em subscrições premium para profissionais e empresas onde a contraparte desempenha um papel associado aos mais variados serviços prestados por essas empresas ou profissionais”, explicou, acrescentando que também estão previstas receitas publicitárias.
Estamos a caminho do pós-Homem?
E porque não implantar a identidade virtual criada por plataformas como a Eter9 num robô que tenha a mesma aparência física da pessoa original? Seria um passo no sentido daquilo que alguns teóricos definem como o “pós-Homem”, um novo ser humano cujas capacidades físicas e intelectuais seriam maximizadas com recurso à inteligência artificial e outras tecnologias. Um ser híbrido, entre o humano e a máquina, que ficaria livre dos limites da biologia e cuja evolução como espécie passaria a assentar sobretudo nos avanços da tecnologia, fintando assim o envelhecimento e a morte física.
Esta corrente de pensamento, denominada de transumanismo, é muito popular em Silicon Valley. Não por acaso, a Associação Transumanista Mundial (WTA) tem a sua sede em Palo Alto, contando com numerosos empreendedores, cientistas e engenheiros entre os seus cinco mil membros.
O objetivo da associação é utilizar as tecnologias para maximizar o potencial do ser humano e superar as suas limitações, incluindo a morte. Até porque “impossível” é uma palavra que parece não existir no léxico de Silicon Valley. Depois dos carros autónomos, dos robôs e das viagens ao espaço para turistas, porque não tentar superar a derradeira fronteira? Mas aquilo que alguns chamam de visão, para outros será apenas húbris. Francis Fukuyama, por exemplo, coloca o transumanismo entre as “ideias mais perigosas do mundo”.
Se nascer dá vida ao mundo, é morrer que permite renovar o mundo
O perigo de que fala Fukuyama surge das implicações de uma sociedade sem morte. Não é a morte condição necessária para a renovação do nosso mundo, de modo a que o velho possa dar lugar ao novo?
“A morte faz parte da vida sim, faz tão parte da vida como nascer. Mas queremos muito mais ver nascer do que morrer. Pode ser cultural. Os budistas, depois de construída uma belíssima mandala, desfazem-na em segundos com a mais serena convicção de que deve ser assim”, disse André Barata.
“Mas pôr «mas» nisto é importante. Enquanto seres biológicos vivemos ciclos naturais, como, a bem dizer, acontece com toda a natureza, mas não tem sido a história da humanidade até aqui uma história de desnaturalização?”, afirmou ainda, acrescentando que o ser humano escapou em larga medida à evolução das espécies a partir do momento em que, com criações como o estado social, deixou de estar submetido à seleção natural através da qual os mais fracos eram eliminados. “Por que será diferente com um gene que nos manda envelhecer até morrermos? Bom, dir-se-á, porque assim acabaremos transformados numa aberração da natureza, uma espécie de monstro inadaptado ao mundo natural e, por isso, em sofrimento. Ou porque não deixaremos espaço aos vindouros, impedindo a sociedade de se renovar. Ou porque, sem fim, a vida deixa de ter um ponto de chegada que lhe dê sentido”, acrescentou.
Por sua vez, Mário Assis Ferreira, empresário, gestor e autor, mostra-se cético em relação a quaisquer tentativas de enganar a morte com recurso à tecnologia.
“Há fronteiras que são isso mesmo: limites inultrapassáveis que a utopia imagina transpor, mas a realidade persiste em respeitar. Como disse Quevedo, esse notável filósofo do século XVII, “o que chamais morrer é acabar de morrer, o que chamais nascer é começar a morrer e o que chamais viver, é morrer vivendo”. Não acredito que a morte – a física ou a mental – possa, um dia, ser uma barreira transponível!”, disse o empresário em declarações ao Jornal Económico.
Mário Assis Ferreira vê a inteligência artificial como algo que “habita em computadores, veste-se em robôs e fabrica-se em laboratórios”. Acrescentou: “A vida humana é um processo em que viver é um prémio e a morte o seu preço”.
Henrique Jorge, por sua vez, considera que o tema da preservação da identidade para além da morte é “sensível e controverso”, mas ao mesmo tempo será “inevitável”.
“Podemos não “escapar” à morte em si, mas queremos que as nossas memórias perdurem. E é isso que tem acontecido ao longo de todos estes séculos de existência humana, só que desta vez existe a oportunidade de todos deixarem um legado digital, que até se pode manter activo – vivo – no ciberespaço”, afirmou. “Não sou dos que defende que a morte deve ser erradicada — como defendem os transumanistas —, mas defendo que manter a nossa existência no espaço digital de uma forma diferente dos simples registos, nos tornará melhores. Não consigo imaginar um futuro onde ninguém morre. Por muito tentador, seria o caos”, concluiu.